quinta-feira, 6 de outubro de 2016


Flávia OliveiraFlávia Oliveira Foto: O Globo

Ser Miss Brasil importa

Não faltam negras lindas no Brasil. O que sobra é racismo


Em maio de 1986, quando Deise Nunes, do Rio Grande do Sul, foi a primeira negra coroada Miss Brasil, eu tinha 16 anos e nove meses. E nunca vira uma negra no topo da lista das mais belas mulheres do país. Minha mãe, Dona Anna, era uma mulher de 51 anos, separada judicialmente do marido, que migrara de Cachoeira (BA) para o Rio havia duas décadas e criava sozinha a filha única. E nunca vira uma negra no topo da lista das mais belas mulheres do país. Minha avó, Zilda Glória, uma preta de cabelos escorridos, que os baianos chamam de cabo-verde, se viva fosse, teria 71 anos. Mas ela morrera mais de dez anos antes, sem nunca ter visto uma negra no topo da lista das mais belas mulheres do país.


Estamos em outubro de 2016, e Raissa Oliveira Santana, uma jovem negra de 21 anos, nascida na Bahia, mas representante do Paraná, estado onde cresceu, foi coroada Miss Brasil no fim de semana do primeiro turno das eleições municipais. Eu tenho uma filha de 20 anos. É a primeira vez que ela vê uma negra no topo da lista das mais belas mulheres do país. Ela ouviu falar de Deise Nunes, mas não testemunhou sua vitória. Assim como eu ouvira falar de Vera Lucia Couto dos Santos, a representante do histórico Clube Renascença, que foi a primeira negra a participar de e a ganhar um concurso de beleza no país. Ela foi Miss Guanabara em 1964; ficou em segundo lugar no Miss Brasil e em terceiro no Miss Beleza Internacional.

Eu ouvira falar de Vera Couto, mas não testemunhei sua coroação. Mas vi Deise Nunes desfilar coroada com seus cabelos crespos, longos e soltos. Eles estavam livres e voavam; os meus, até ali, bem presos ou bem curtos. Depois a acompanhei por anos a fio nos desfiles como rainha de bateria da União da Ilha. Isso fez muita diferença.

O Brasil tem cerca de 204 milhões de habitantes. Mais da metade (53,6%) se autodeclarou preta ou parda ao IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad 2014 (último resultado disponível). Há quase 51 milhões de meninas, jovens, mulheres e idosas negras no país. Elas somam 52% da população feminina. São numerosas há muito tempo. Mas atravessaram séculos para ver alguém a sua imagem e semelhança, Deise Nunes, passar ao topo da lista do ranking das mais belas mulheres do país. Tendo visto, tiveram de esperar mais três décadas — duas gerações — para ver a segunda, Raissa Santana.

Os concursos de beleza feminina existem no país desde fins do século XIX. Ocorriam sem periodicidade anual até 1954, quando surgiu o Miss Brasil. Desde então, entre apogeu, decadência plena e renascimento, o evento só não foi realizado uma solitária vez, em 1993. O regulamento ainda proíbe moças casadas, mães, com menos de 1,68 metro de altura e maiores de 26 anos. Diante de tantas conquistas femininas no mercado de trabalho, na educação, na sociedade, é modelo antigo, saturado, ultrapassado, embolorado. Mas segue útil como espelho de uma sociedade que se acostumou a exaltar a branquitude e desprezar a negritude. Só isso explica a vitória de apenas duas negras em seis décadas.

Não faltam negras lindas no Brasil. O que sobra é racismo. É o preconceito que impõe o padrão de beleza de pele branca e cabelos lisos a um país mestiço e cacheado. Meninas e adolescentes negras não se reconhecem no que se convencionou chamar de belo. Não têm a cor da pele, a textura de cabelos, o tamanho do nariz, a espessura dos lábios tidos como admiráveis. Isso, de um lado, afeta a autoestima; de outro, limita oportunidades, uma vez que os padrões discriminatórios são incorporados e reproduzidos nas relações socioeconômicas e institucionais. Não foi por acaso que, no mercado de trabalho, boa aparência virou eufemismo de pele branca.

O Miss Brasil 2016 teve seis candidatas negras, número inédito. Além de Raissa, participaram do concurso Beatriz Leite (Espírito Santo), Deise D’anne (Maranhão), Mariana Theol Denny (Rondônia), Sabrina Paiva (São Paulo) e Victória Esteves (Bahia). Deise, batizada intencionalmente com o nome da primeira Miss Brasil negra, ficou em terceiro lugar na disputa. Foram duas negras no pódio. “Tivemos seis representantes estaduais negras. Todas assumiram seus traços afro, e isso mostra o empoderamento da mulher negra. Desejo que, a partir de agora, seja natural a participação de candidatas negras em todos os certames de beleza”, disse a primeira Miss Brasil à colunista.

Ver mulheres negras como misses e médicas e economistas e engenheiras e atrizes e jornalistas e cientistas e juízas e professoras alimenta o orgulho. Cria referências para meninas e jovens que estão a escolher seus caminhos. O nome do jogo é representatividade. E importa. Muito.


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